Doida Disciplina. Ronaldo Brito. 2005
A força de atração imediata dessas telas, muito pequenas ou muito grandes, vem da ação espontânea de uma tinta que parece surgir do nada para revigorar nosso pálido ou ácido cotidiano. Cada uma delas é a prova viva de que ainda vale a pena olharmos com curiosidade as coisas ao redor. A matéria volúvel da pintura renova e espairece a própria atmosfera que respiramos, estimula nosso envolvimento mimético com o mundo. Blocos transitórios de pintura, sustentam-se indefinidamente no estágio da tinta fresca e assim instigam a superfície do real a tornar-se mais porosa às nossas sensações.
Parte de sua surpresa estética deriva do fato inesperado de reagirem com tanta vontade, tanta intensidade, a seus motivos gastos e banais, em princípio fadados historicamente a desaparecer. Como pintar significativamente, hoje em dia, flores e frutas? Já disse, contudo, um poeta (E. E. Cummings), sempre é a bela resposta que faz a mais bela pergunta. E a resposta, no caso, desarma pela simplicidade: transfigurando flores e frutas em matéria pictórica contemporânea.
Abrindo intuitivamente seu caminho entre as flores soberbas de Manet até, quem sabe, os sanduíches de Oldenburg, e de passagem absorvendo energia plástica da obra generosa de Jorge Guinle, essas telas, à sua maneira despretensiosa, reintegram a natureza ao metabolismo da pintura contemporânea. E é justo o caráter singular, biográfico, desse súbito reinteresse impressionista pela beleza instantânea da natureza que o autoriza como fato artístico público e atual. Com sua sensibilidade inquieta, de reflexos nervosos, empregando na verdade uma combinatória de elementos plásticos entre o analítico e o aleatório, a pintura de Gabriela Machado pertence inteira à cultura urbana moderna. E se, em especial, os pequenos quadros parecem quase pedir o adjetivo preciosos, é necessário logo acrescentar o seu contraponto — preciosos, sim, e caóticos.
Como seria de esperar, essa produção voraz, algo incontrolável, aposta tudo no efeito de propagação. O que de saída a obriga a dissolver, virtualmente, os limites de seu suporte. Por isso, são telas lançadas, jamais compostas, a reafirmarem sua mobilidade essencial — se começam, por assim dizer, naturezas-mortas, terminam manchas soltas de pintura, nem abstratas, nem bem figurativas, ainda sem nome.
Acompanhando nossa presença cada vez mais colada ao curso do mundo, tudo menos distanciada e contemplativa, essas telas procuram instintivamente uma fluidez topológica — muitas delas formulam o paradoxo de círculos dispersivos. Em todo caso, mostram sempre uma coisa só, uma só imagem, por meios múltiplos e contraditórios. Como fenômenos plásticos, seriam típicos curtos-circuitos bem-sucedidos.
Mas só conseguem sê-los porque vibram, literalmente, com a descoberta da cor. Todos esses quadros constituem um certo experimento nesse sentido. E porque aparecem assim aos próprios olhos da artista, acabamos contagiados pela emoção dessa recém-descoberta vocação de colorista. E já que se trata aqui muito mais de improvisar uma fala inspirada do que de dominar uma língua erudita, a reflexão sobre a cor é concomitante à sua aplicação urgente. O que, por sua vez, implica o aparente contra-senso de uma disciplina da espontaneidade, um fazer incansável que não pode, entretanto, acumular-se. Ao contrário, ele soma esforços para aprender a se esquecer. E assim, a cada nova tela, reinaugurar-se. Daí o seu irresistível frescor.
Ronaldo Brito publicou em 2005 a Experiência Crítica, editora Cosac Naify – seleção de textos escritos entre 1972 e 2002. É professor no curso de especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil e do programa de pós-graduação de História Social da Cultura na PUC do Rio de Janeiro. Foi o primeiro crítico a escrever um ensaio sobre o movimento Neoconcreto (1975) – Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, MEC/Funarte, 1985, reeditado em 1999 pela Cosac e Naify, série Espaços da Arte Brasileira. Publicou ainda pela Cosac e Naify, Sérgio Camargo (2001) e realizou análises profundas das obras de Amilcar de Castro, Iberê Camargo e Eduardo Sued entre outros. Como poeta publicou O mar e a pele (1977), Asmas (1982) e Quarta do singular (1989).