E, ainda por cima, são vermelhas… Paulo Sérgio Duarte. 2002.

A cor de sangue domina o branco impuro do papel, parece fustigá-lo num drama romântico. Poder-se-ia imaginar cada pintura como um pequeno teatro comprimido, monólogos do vermelho, como um grito contemporâneo. Mas nessa cor não reside nenhuma angústia e, se é gritante, nela está presente uma satisfação, uma alegria mesmo do fazer que contraria a memória da escolha cromática e suas alusões.

Primeiro vemos somente cor, mas, no mesmo instante, move-se intensamente nos rastros do pincel. A tinta não flutua, adere à superfície, no entanto não vai entranhá-la. A pincelada larga e sanguínea se opõe fortemente ao plano claro. Reina sozinha sobre o que antes parecia uma imensidão branca. Agora se impõe e redimensiona a superfície na escala do corpo. O gesto é contínuo, rápido e sobrepõe-se a si mesmo algumas vezes. Sua velocidade varia dependendo do suporte: mais rápido e suave sobre o papel, seria mais lento diante da resistência áspera da tela e traria outras surpresas. A gestalt do resultado final é convulsionada pelo movimento que sugere ter ido até onde o braço alcançava. É evidente que estamos muito longe de um passado – já moderno – quando os pintores trabalhavam com o pulso. Nessa pintura, Gabriela Machado mobiliza o corpo inteiro. E sua forma é, também, este movimento. Então, a presença do corpo é literal e constitutiva da pintura. Insisto: não há alusão a uma fantasmática do corpo ou memória de figura. Encontramos, sim, a presença do corpo nos seus rastros na superfície.

Mas o gesto não é tão livre quanto parece. Não se trata de algo instintivo e pulsional. Na verdade, a artista olha um modelo, seu ponto de partida, cuja imagem será transformada pela ação da pintura. São grandes instalações de tiras contínuas do prosaico papel higiênico que ocupam parte do atelier. Um caminho tortuoso foi meticulosamente construído e está suspenso no ar, quase escultórico: o seu “modelo”. São seções dessa trilha aérea que o olhar segue e o braço tenta acompanhar. A metamorfose da instalação branca de papel em pintura sanguínea torna-se uma mimésis sem representação. Para os que vivem matando a pintura, o trabalho de Gabriela é uma lição. No reino de objetos banais, de cambalhotas performáticas, de primitivos digitais e suas paletas eletrônicas com milhões de cores, nessa empáfia regressiva chamada de “pós-moderna”, uma investigação como a que temos diante dos olhos nos renova a crença na persistência da arte.

A questão do belo, apesar de banida da estética por exigências históricas, retorna de tempos em tempos de seu exílio para obras contemporâneas, como nessas pinturas de Gabriela. Por que são belas essas pinceladas sanguíneas sobre o papel? Colabora para isso a solidão do vermelho escuro, condição necessária, mas, sem dúvida, não suficiente. A concisão do resultado final e a crueza da pincelada única e contínua, sem retoques ou macetes, também contribuem. Há, portanto, um dado moral, se quiserem, ético, nesse fazer que o dignifica. Mas também a mimésis sem representação na busca de uma forma que seja capaz de traduzir o espaço em um plano abandonando qualquer ilusionismo, anulando qualquer profundidade, reduzindo este espaço a puro movimento convulsivo na superfície. Finalmente, a escala do corpo humano que produz uma empatia imediata com o próprio corpo do observador, como se suas dimensões não pudessem ser outras. Tudo isso, para mim, colabora para a beleza dessas pinturas. E, ainda por cima, são vermelhas…

Paulo Sergio Duarte

Crítico de arte, professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados / Cesap da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Lecionou Teoria e História da Arte na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro, Parque Lage. Foi Assessor-Chefe do RIOARTE (1983-85) e primeiro diretor geral do Paço Imperial / Iphan, de 1986 a 1990, responsável pela sua implantação como um centro cultural, período em que foram realizadas, entre outras, exposições de Lygia Clark e Hélio Oiticica, Sergio Camargo, Miró, Gaudi entre outros, Expedição Langsdorf, Amílcar de Castro (única retrospectiva do artista em vida), Tesouros do Kremlim e Carlos Vergara. Publicou os livros: Anos 60 – Transformações da arte no Brasil (1998); Waltercio Caldas (Cosac & Naify, 2001); Carlos Vergara (Porto Alegre: Instituto Santander Cultural, 2003).