Gabriela Machado – as flores e as folhas antes/depois (entre liliputianos e Gulliver). Maria de Fátima Lambert. 2013.

“Todo anjo é terrível. E, não obstante, ai de mim, já os canto…”

(Rainer Maria Rilke, “Elegia II”, Elegias de Duíno / Sonetos a Orfeu)

“…Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas

Coisa tão velha como andar a pé

Esses vareios do dizer.”

(Manoel de Barros, “Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada.”)

“…outras feridas alastram subitamente no fulcro da memória

                outras noites atravessam-me

                semeiam pelo corpo flores e pânico…”

(Al Berto, “Outras Feridas”, Vígilias)

 

2 anos depois, retomo as flores e as folhas [antes] de Gabriela Machado. Nesse intervalo foi possível visitar o seu ateliê no Jardim Botânico – Rio de Janeiro. Num dia meio nublado e com chuva por intermédio, as plantas e as flores no pequeno pátio interior do ateliê confundiam-se com as desenhadas e pintadas pela artista carioca.

David Hume, no séc. XVIII, soube valorizar a disciplina e sabedoria dos pintores quando lhes reconheceu legitimidade (quase exclusiva) para definirem a “norma de gosto”. Essas diretrizes que guiaram o público no conhecimento e para efeitos de exercerem juízos de valor – enunciando e aplicando uma axiologia estética. Entendeu os criadores como guias para a formação do gosto, designando-os por excelência. A estes acresceu os estetas, aquelas pessoas que de perto com eles privassem. Ou seja, enfatizando a exigência de existir uma proximidade aos artistas e saber direto às suas obras. Efetivamente, ao conviver com artistas e autores, aceita-se essa aproximação, com fruição e intuito de elaborar ideias precisas acerca do que sejam o seu pensamento e produção. Hoje, estas ideias de Hume, prevalecem no quadro conceptual e revelam-se pertinentes.

As viagens de Gabriela Machado a Lisboa – a anterior retrocede a 2011 – realizam-se, com periodicidade desde há anos, tendo ganho uma noção bem realística e cúmplice à cidade e, em particular, quanto às zonas históricas e cêntricas que percorre. Absorvendo e elaborando as imagens de flores, árvores e demais vegetação esparsa pela cidade, àquelas espécies que povoam os arredores e a envolvência de seu ateliê no Rio, a artista trouxe para “dentro de muros” novas morfologias, conferindo o interesse de lhes aprofundar espessura e modelação.

As 10 pequenas pinturas que mostra na Galeria 3+1, seguindo as suas próprias palavras “venceram-na pelo cansaço”, pois resultam de um processo moroso de elaboração, onde as camadas de tinta, para além de as volumetrizarem, plasmam a duração e a decorrência do tempo. Tanto as pinturas estão saturadas de si mesmas como da tinta da história – seus episódios e situações, presumo eu, vividos pela autora. A matriz inicial significou um acumulo que densificou a iconografia, povoando-a de conteúdos semânticos convergentes. O acto de sobre uma superfície se debruçar, num acto minucioso que envolve a atenção da mão quanto do corpo, adquiriu fisicalidade no processo tridimensional que agora se conhece.

A pessoa do artista é uma espécie de Gulliver que ternamente encara as susas criações quase liliputianas mas possuidoras de uma energia incrível e saudando as emoções cromáticas, tanto assim que se extravasam, saem de si para que lhes seja outorgada (reconhecida) estatura e equilíbrio, de modo a se erguerem e permanecerem por si só no espaço. As flores, folhas são criaturas. A densidade da cor, pelo tato da autora garantiu-lhes essa condição. Povoam as paredes, apropriando-se de um tempo e ficando. Duram, não são efémeras, contrariando a precariedade da vida. Estabelecem-se.

As 11 pequenas esculturas de porcelana (argila, pigmento e esmalte) ganham consciência e instalam-se. Desde há 8 meses que estas peças de pequeno formato são trabalhadas:

“…são trabalhos que trazem o olhar da minha pintura, são esculturas que saem do fazer, da observação e principalmente da curiosidade com o material, meu trabalho acontece muito pelo o que pode instigar meu olhar e minha curiosidade.” (Gabriela Machado, excerto inédito, 28 maio 2013)

Na mostra de Lisboa, as peças perfilam-se num randoom display algo intimista que apela à acuidade e prolongamento do olhar e seduzem o tato. As bases de madeira, onde estão colocadas, incorporam-se nas esculturas respetivas, erigindo um todo convertido em qualidade indissociável. Cada um dos pedaços de madeira, de aparência tosca, foi cuidadosamente escolhido, como se estivesse previamente destinado a pertencer àquela mesma escultura e determinando-a. Nalguns dos casos, os bocados de madeira aparentam ser quase geométricos, empilhados e consignados sob essência de pedestal. Estatuam, acentuando quer o brilho e brancura, quer o colorido nas peças modeladas.

Na (história da) arte europeia constata-se a recorrência em diferentes estilos e períodos, no respeitante à criação de flores esculpidas, celebrando um gosto e estética pregnantes. Lembrem-se, a título de exemplo, as flores de porcelana, na Espanha do séc. XVIII. A sua detalhada entoação volumétrica, a estreiteza rigorosa de contornos e pormenores, num fechamento técnico e perfecionista, atuava numa direção quase oposicional às obras aqui exibidas. As folhas, flores e caules modelados são algo pitoresco, revendo a definição do gosto instituído por outras fixações normativas.

As flores contorcionadas relacionam-se à tensão pulsional que Gabriela Machado inflige nas suas pinturas, através das pinceladas e empastamentos de óleo. São grossas e densas pinceladas, exercidas com uma decisão irrevogável, assim instaurando um novo endereçamento no seu percurso artístico. As morfologias corporalizadas expandem uma intencionalidade que viaja entre tipologias de barroco e o informalismo de alguns pequenos modelos (estudos) antropomórficos, em gesso, de Rodin ou Camille Claudel. Oscilam entre uma segurança técnica e a autonomia de conformar figuras – patenteando um hibridismo “dirigido”. Tomando como impulso elementos do mundo visível e cognoscível, a autora acede a um território onde o real é domado pelo imaginário pessoal, sob desígnio da intuição e vontade.

Para estabilizar estas peças em convulsões anímicas, a pasta não foi esticada, nem planificada. Antes foi concentrada, amassada pelas mãos (num ato de posse), testemunhando tensões e equilíbrios, ordenados consoante o ritmo das ideias, da praxis e da poiésis.

Mais e mais, olhando as esculturas, à semelhança do que já ocorria ao contemplar as suas pinturas, em algumas das formas, os desígnios configuram pequenos seres, ansiosos por guardar in extremis a sua alma.

Flores e frutos, são palavras que integram frases em diversas compilações poéticas de Rainer Maria Rilke. Como se brotassem da terra e quisessem ser estabilizadas na terra:

A diversidade das figuras/ do teu antiquíssimo abandono é tal/ que só, durante umas breves medidas, / ó fecunda natureza, /te conseguimos acompanhar.” (R.M. Rilke, Frutos e Apontamentos)

As flores pintadas e as flores esculpidas, reunidas, constituem uma miniatura de jardim, instalam uma paisagem detalhista. Um jardim imaginário – algo liliputiano (pois não…), onde interpelam quem delas se queira alojar.

Maria de Fátima Lambert

Nasceu no Porto. Vive e trabalha no Porto e Lisboa, Portugal.
Licenciada em Filosofia (1982) pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica.
Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea (1986) pela mesma Universidade, com a dissertação: “A Estética Pessoana no Modernismo Português”. Doutorada em Filosofia Moderna e Contemporânea – Estética (1998) pela Faculdade de Filosofia de Braga, na Universidade Católica Portuguesa, com a dissertação: “Fundamentos Filosóficos da Estética de Almeida Negreiros”. Coordenadora do Curso de Licenciatura de Gestão do Património, Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto (ESE‐IPP), desde 1998. Coordenadora da Comissão para o Ensino Artístico, Ministério da Educação, Lisboa, 196/97. Presidente do Conselho Científico da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do
Porto (ESE‐IPP), de 1998 a 2003.