Gabriela Machado. Reynaldo Roels Jr. 1992

Tratar a pintura (ou desenho) a partir da gestualidade é um procedimento já explorado pela arte, desde que o expressionismo abstrato e, antes dela, também o surrealismo apareceram em cena. Com eles, em alguns momentos, o aleatório também fez sua aparição e constitui um modo específico de pôr em xeque paradigmas que o precederam. No caso presente, o desta mostra, trata-se não de retomar a manobra – o que poderia resultar menos em uma retomada e mais esvaziamento da história – , mas de atualizá-la dentro de certos princípios menos evidentes, reecontrando uma nova ordem em um novo conjunto.

O trabalho de Gabriela tem início com o gesto, marcando no papel um percurso súbito e imediato. Não instintivo, mas consciente a despeito de automatizado. Não se esgota nisto, porém: este é apenas o início do processo, com que apenas parcialmente precisamos tomar contato. Aí é que começa a obra propriamente dita, na qual o desenho exerce apenas o papel de matéria primeira do raciocínio. A partir daí, o que interessa são os desdobramentos serializados que ela desenvolve.

Já um artista como Milton Machado mostrou ser possível decompor a pintura, não a partir de dentro, de seus elementos constituintes, mas a partir de um princípio serial e combinatório extremos ao trabalho original (melhor dizendo, inicial) e incorporá-lo em seguida à obra como um de seus elementos primários. Como ele, Gabriela compreendeu a possibilidade de refazer o trabalho tendo como princípio uma “arquitetura” que não será encontrada na matéria-prima, ou na pintura inicial (embora vá dela depender na medida em que aquela arquitetura oferece possibilidades a priori limitadas). Gabriela, contudo, estendeu a estrutura arquitetônica revelada por Milton para a arquitetura real, aquela do lugar onde o espectador vive efetivamente a obra, com resultado de que a ênfase recai menos nesta do que naquele.

Não é necessário insistir no fato de que não há qualquer intenção de limitar o trabalho a um situacionismo existencialista, onde a arte vale unicamente por aquilo que ela “dá a viver ao espectador” – afinal de contas, qualquer obra de arte digna deste nome o faz, com maior ou menor intensidade -, e sim de incorporar a ele um elemento sensorial explícito, dialogando com procedimentos que não necessariamente ou somente de maneira assistemática permitem sua explicação (é bom não esquecermos que existe entre nós toda a tradição neoconcreta para sustentar tal atitude). Embora, Como é evidente, não se trate aqui de um único trabalho (uma “instalação”) mas de um conjunto de trabalhos (uma “exposição”, no sentido tradicional do termo).

O que se oferece ao espectador, assim, é a confluência de uma série de postulados, todos já presentes na tradição da arte contemporânea (históricos, portanto), reorganizados de modo a possibilitar uma leitura onde sua pertinência seja evidenciada. Pois, entre simplesmente absolver uma tradição, por relevante que seja, e potencializá-la no real, não cabe dúvidas quanto atitude a adotar.

Reynaldo Roels

O crítico e professor de história e teoria da arte Reynaldo Roels, foi diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, RJ. Entre 1985 e 1990 crítico de arte do Jornal do Brasil; coordenador do Centro de Documentação e Pesquisa do MAM, de 1990 a 1993; e curador da Coleção Gilberto Chateaubriand durante três anos.