O lugar da pintura em centenas de imagens. David Barro. 2008

Se algo diferencia os artistas é a sua maneira de olhar. Muitos, embora na presença das coisas mais banais são capazes de desenvolver um olhar tenso, capaz de ir além da simples aparência formal. Gabriela Machado pertence a essa série de artistas que não escondem a vertente emocional. Uma simples casca de uma tangerina pode desencadear a decisão de pôr a tinta a trabalhar. E o resto, produto da tensão do ateliê, não é mais que a propagação de uma pintura capaz de deslizar por si própria, sem perder de vista aquele primeiro olhar mas sem deixar que ele submeta o afazer de pintar.

A pintura final, mais do que conformar-se, desvenda-se, algo como aquela magia casual que levou Meliés a descobrir a magia do cinema; deixa-se levar pela própria deriva de aquele primeiro olhar, como uma turbulência que caminha à procura de sua serendipidade. Então aparece uma cor que pede outra, quase instintivamente, até conformar uma estrutura formal que nos lembra que tudo partiu de aquela casca de tangerina, ou de uma flor, ou de um papel higiênico que invade o espaço do ateliê. Tudo se resolve como uma descoberta, provocada e procurada, mas capaz de deixar que essas derivas com forma de imagem conformem o seu próprio lugar: o lugar da pintura.

Tudo o que temos estado a assinalar tem lugar no ateliê, embora o olhar chegue de fora. Não nos devemos cansar de insistir nessa idéia: a tensão para um pintor dá-se sobretudo no seu próprio ateliê. O lugar da entrega: o tempo e, outra vez, o lugar da pintura. Algumas das mais conhecidas fotografias do ateliê dizem tudo. O de Bacon, pequeno, austero e violentado na sua deordem; o de Matisse impoluto, quase virgem. Em ambos os casos a opção parece ser a mesma: perseguir a pintura.

A atmosfera que caracteriza o ateliê de Gabriela Machado pojecta-se no seu trabalho. Não é difícil reconhecer estímulos e sinais desse universo na sua pintura, sobretudo de coisas penduradas que parecem flutuar como as suas manchas de cor sobre a tela. Estruturas cromáticas destacam-se do fundo graças a um ateliê luminoso que concede uma certa calma ao acto de pintar. A luz particular de um lugar como Rio de Janeiro, como a paisagem das suas montanhas, também parece expandir-se detrás da sua pintura. Por isso em alguns casos a cor é mais luz que cor. Que se descobre depois, curiosamente como na sua própria trajectória, onde depois de um domínio do vermelho alizari se destapa um fractal onde cabem todas as cores, que responde às suas pinturas actuais. A partir daí, depois de uma cuidada e lenta preparação dessas cores, começa a pintar; primeiro em telas pequenas, como a ter cuidado com a medida e sem deixar escapar a tensão; depois numa escala maior, quando já se misturou a pintura e se carregou de imourezas, de acontecimentos.

Para Gabriela Machado o ateliê é o espaço das coisas, cheio de naturezas mortas e vazios que deixam respirar à maneira de fissuras perceptivas. Mais tarde tudo parece colocar-se nos seu lugar, ou melhor, tudo parece ganhar o seu lugar. Como o curso de um rio ou qualquer acidente natural, capaz de se confrontar com o etorno para construir o espaço da sua poética e parecer que tudo foi assim desde um princípio, que tudo estava ali. Como na pintura de Gabriela nada consegue ser um produto a priori, o espaço marca as suas próprias leis e acidentes. Ela mesma assume como esse vôo cego se torna a condição contemporânea da sua produção, uma produção que não permite uma especialidade dada mas uma propagação de idéias e actos.

O olhar de Gabriela Machado é curiosa, detalhista. Um olhar capaz de se construir. Penso imediatamente em Berger e nesses textos onde descreve a experiência de olhar quando espaço e tempo se unem. Curioso é um dos seus textos sobre um prado que lhe assalta cada vez que regressa à sua casa do centro da cidade. Para Berger o prazer que deriva da observação profunda desse prado é uma questão de contingências contrapostas. Os acontecimentos que têm lugar nele adquirem uma significação especial porque ocorrem durante os dois ou três minutos em que ele está obrigado a esperar por uma passagem de nível que lhe impede de avançar quando a barreira está fechada. “É como se estes minutos encheram uma zona do tempo que encaixa perfeitamente na zona espacial do prado”¹, diz-nos. Berger descreve os momentos em que estamos imersos na experiência que acontece fora de tempo, como a relação de Gabriela Machado com as formas dos objectos. A experiência da pintura não apenas marca estes objectos mas também contém-nos. É como se flutuassem no meio do tempo narrativo da vida real. É a experiência de observar fruto de um olhar tenso; a experiência do instante.

Alberto Tassinari fala-nos acertadamente da existência de um centro que não é exactamente o centro do quadro nas pinturas de Gabriela Machado. O olhar oscilaria entre ambos centros, numa região intermédia, como os acontecimentos que dentro do prado retêm o tempo e as palavras de Berger. O olhar, agora com a forma de pincelada, desconcentra-o e desabriga-o para voltar a concentrar tudo. Nas palavras de Tassinari, “onde um gesto se prolongaria, ganharia expressão, traçaria um destino, pára”². É contido excesso e o excesso contido da expressão. Porque Gabriela Machado trabalhar a partir de quebras com forma de aproximação que não permitem ver a totalidade das coisas; como um sadiano jogo de transparências pintadas ou um flirt com o impossível.

Nas obras de Gabriela Machado há uma necessidade de esconder (dissimular) e descobrir ao mesmo tempo. Essa impossibilidade leva-nos à poesia mais pura. Se traduzo-o em escrita penso em como Blanchot cultivou o fragmento do real para fazer florescer o poético, capaz de descompor a ordem do texto como um jogo de sensuais símbolos capazes de velar atribuições ou definições concretas; sem certezas. É a linguagem – a pintura – como encontro e desencontro, como luz e sombra, como penetração no indizível. E sempre desde a paradoxa sensação de estar a construir aparentemente o mesmo quadro, a mesma emoção. A virtual abstracção nasce a partir da acumulação de obstáculos, de obsessões. Porque existe sempre algo por detrás, que se acumula e se distingue, incluindo nos seus papéis com pinceladas vermelhas onde a cor de destilava a partir de diferentes intensidades, produto de quem força o olhar à hora de construir a imagem.

A relação que Gabriela Machado estreita com a pintura é aliciante. Como se atravessasse o espelho para viver num mundo dominado pelos objectos; quando estes ganham vida. É a pintura como deriva, como suceder no universo dos sentidos. Assim, o dia a dia, a convivência com o lugar onde se dará o lugar da pintura se torna vital. O argumento mínimo actua de desencadeante pictórico, à maneira de uma vibrante natureza morta. Outra vez, do contido chegamos ao excesso, de formas que se cruzam, de cores, de olhares traduzidos em mancha, em aromas e sabores como os daquela pintura que dizia saborear Manet.

Estamos a falar de pintura, mas também estamos a falar de desenho. Porque a pintura de Gabriela Machado configura-se a partir de contornos sem nunca perder essa projecção corporal que nasce de uma maneira de pintar que é sempre íntima, pulsional, mas também de um fazer arquitectónico, de um sentido espacial. Gabriela Machado confessa projectar-se literalmente no meio do espaço da pintura. O resto não é mais que essa cirada turbulência que permite o fluir da pintura, capaz de envolver-se sobre si mesma, acumulando gestos e cores que são o caldo do produto final. Daí essa densidade, sem limite, indizível como a poesia, incómoda e abismal como algo potencialmente o produto de uma cegueira. Daí que na sua pintura parece que se tenha perdido o fundo e a figura; tudo já é o mesmo nestas manchas que flutuam. Mas sempre, por detrás fica essa experiência do desenho, da linha. A acumulação de tinta chega mais tarde, algo como se a pintura fosse um conjunto de matriushkas.

A pintura de Gabriela Machado é uma espécie de abstracção ordenada, capaz de apreender o movimento do real ao buscar o pulsar da pintura. É uma pintura acontecimento, que se dá antes e durante o acto de pintar. Tudo sai ao encontro da pintura. Tudo é ligado nesse gesto de pintar. “Mais do que consumir o espaço, o gesto define-o. A ausência é percebida pela presença. A configuração abstracta progride pelo espaço como um pincel; move-se no vazio, com a intenção de criar, conceber; trazer o desenho finalmente à vida”³.

Conter o gesto, agitar a cor. A imagem dobra-se, retorce-se como um ouriço que tenta proteger-se. A pintura vibra. Parece fluctuar na tela. Entretando, Gabriela Machado continua a olhar tensamente à sua volta a procurar mais objectos, mais cores, mais matérias e formas… centenas de imagens capazes de nos descobrir o lugar da pintura.

¹ John Berger, Mirar, Editorial Gustavo Gili, Barcelona 2001 (título original: About Looking, Writers and Readers. Publishing Cooperative, Ltd., Londres)

² Alberto Tassinari, “Tinta ao Alvo”, 2006

³ Robert C. Morgan: “Passagens”, 2003

David Barro

É editor da DARDO, crítico de arte e curador de exposições. Desde o ano de 1998 é crítico do El Cultural (El Mundo) e desde 2006 diretor da DARDO magazine. É assessor da Fundação Pedro Barrié de la Maza e responsável pelas aquisições de sua Coleção de Pintura Internacional. Desde 2011 é assessor de la Feria Internacional de Lisboa (FIL) e membro da comissão consultiva da Arte Lisboa. Foi diretor artístico da feira de arte de Vigo Espacio Atlántico (2010) e professor de arte e cultura visual na Escola das Artes da Universidade de Oporto (2000-2006). Foi diretor e fundador da revista [W]art (anos 2003-2005); diretor da revista Arte y parte (1998-1999); diretor e fundador da revista cultural InteresArte (1998-2002) e diretor artístico e membro fundador da A Chocolataría en Santiago de Compostela (2005). Foi assessor da Fundación Caixa Galicia (anos 2001-2002); diretor artístico do projeto Look Up! Natural Porto Art Show en Oporto (2010); e diretor artístico do Festival Internacional de Acción Artística Sostenible SOS 4.8 en Murcia (2011). David Barro é membro fundador do Instituto de Arte Contemporáneo Español (IAC) e das suas duas primeras juntas diretivas. Foi coordernador editorial de ARCOESPECIAL 05, da catalogalização da Colección Fundación ARCO e coordenador del IV Foro Atlántico de Arte Contemporánea (1999). Publicou mais de 900 artigos em suplementos em revistas nacionais e internacionais e como curador de exposições realizou 35 exposições coletivas e 32 individuais. Também participou de numerosas conferências em cidades como Roma, Rio de Janeiro, São Paulo, Montevideo, Mexico D.F., Lisboa, Oporto, Madrid, Barcelona o Bilbao. Como editor da DARDO apresentou e coordenou mais de 60 livros nos últimos cinco anos.