Para Todos os Mares: O Brilho Segundo Gabriela Machado. Matilde Campilho. 2020.

Já é Março, e a cidade ainda está toda cheia de purpurina. Um de nós entra no ónibus e lá está ela, cintilante, marcando o lugar de uma mulher que há um mês atrás se sentou ali fantasiada. Ou caminhamos um pouco na calçada, e na nossa frente alguém deixa ficar para trás uma pegada de brilho. Encostamos um ombro ao poste elétrico, esperando o sinal abrir, e quando finalmente chega a nossa vez de avançar na estrada, notamos uma mancha colorida que nos ficou camisa. Estas coisas, já sabemos, ainda hão de acontecer por muitos meses. O Carnaval deixa um rastro fluorescente na cidade, difícil de apagar. E se existem aqueles que se esforçam por esfregar o fulgor colorido até que desbote, existem outros que fazem por ele permanecer. Gabriela Machado é desse grupo: através do seu trabalho, ela faz por recordar que o brilho ainda é a marca forte desta cidade.

O Carnaval é a grande festa pública. Traz para a rua o circo, a canção, a máscara e a liberdade. Durante dias a fio mulheres e homens desfilam em comunhão, oferecendo a cada passo banal o ritmo da dança. Até na hora de pedir um café o folião agita um pouco o pé, ou a cabeça, quem sabe até só os olhinhos. Dentro da máscara- mesmo que a máscara nalguns dias seja só um risco amarelo no rosto- alguma coisa visceral e livre se sacode sem parar. Não importa se aquele que veste a fantasia é alto ou baixo, gordo ou magro, se tem o cabelo escuro ou claro, nem sequer importa a língua que fala ou o lugar de onde vem: dentro do círculo carnavalesco que ocupa a cidade durante um par de semanas, cada um é aquilo que deseja ser. E do centro de si brota, girando, uma bola de fogo. Cada uma das pinturas de Gabriela expostas nas paredes dessa sala traz para a tela esse clarão. Repare: tal como acontece com as pessoas que passeiam pela cidade inteira nos dias da folia, há nesta exposição trabalhos de corpo maior e trabalhos de corpo menor. Algumas telas parecem ocupar o nosso olho inteiro, outras se alojam com aparente cuidado num canto mínimo de nossa retina. Mas como sucede com todas as coisas vivas que brilham, de nenhuma delas conseguimos afastar o olhar. E olhando-as, seja lá em que mês for, regressa ao nosso corpo aquele agitar de pé ou de cabeça, um que nos recorda de nosso ritmo natural. Nada disso é por acaso.

Quem conhece a Gabriela sabe que o seu é um trabalho feito em cima da verdade, e um para o qual ela transporta a própria vida. O pandeiro que ela toca, reverbera na pintura. O mar que ela atravessa, seja nadando ou equilibrada sobre a prancha, salpica de água salgada os pigmentos. E do asfalto das cidades sobre as quais ela caminha, sobra sempre alguma pedra de gravilha que se mistura na penugem de seu pincel. A este aparente trabalho do acaso alia-se ainda a constante busca de Gabriela pelos materiais certos que, como não poderia deixar de ser, são muitas vezes os mais vulgares. A vida é vulgar, e é por isso que ela brilha tanto. Então a artista vagueia pelos mercados à procura dos papeis mais fluorescentes, mais sonoros, muitas vezes até melodiosos, e embrulha neles a pintura. Consegue assim fazer com cada um dos seus trabalhos um reflexo muito puro daquilo que é mais humano: envolvendo o tesouro, está quase sempre o banal. Veja-se, por exemplo, aquela pinturinha com um mar estrondoso e sereno ao centro – delineando-o, um papel de todas as cores grita a alegria. Veja-se um outro jarro de flores, quieto e abandonado sobre um fundo amarelo – em volta dele, a cor laranja toda viva. Ou uma concha, cheia de movimento e ao mesmo tempo suspensa – emoldurando-a estão dois tipos de papeis brilhantes, e eles cantam o carnaval na beira do mar. Há ainda aquela montanha noturna, uma de minhas preferidas, pintada dentro de uma forma oval e aparentemente fechada – a envolvê-la estão dezenas de salpicos de tinta rosa choque. A chuva de cor que embrulha a paisagem está ali para lembrar-nos que ao fim da noite escura está sempre um fogo de artifício, mesmo que silencioso. E que a solidão não é, não pode ser, o constante sinonimo da melancolia.

No Carnaval, para além da música que toca nas ruas noite e dia, e para além dos fatos coloridos que esvoaçam por todos os lados, há cartazes sendo levantados a toda a hora. Os foliões seguem o bloco, e carregam nas mãos as frases curtas, que na maioria das vezes incitam à alegria. Frases do tipo “Vem com a Gente”, “A Rua é Nossa”, ou até “Casa Comigo” avançam na cidade desfiando palavras pela rua. É a linguagem se expandindo, e dançando com os corpos. Gabriela Machado, nas suas pinturas, transporta esse mesmo movimento verbal para a tela. E da mesma forma, faz com que ele avance. São sussurros, às vezes. Aparentes gritos, outras vezes. Chegam até a ser apenas inquietações, porque mesmo alguém que dança se inquieta de vez em quando. Numa pintura muito serena, feita de um sol ao centro, a frase aquele que sabe o que é meu surge ali como um afago no tempo. Numa outra, de um azul celestial, aparece de repente isto: foi ontem que eu vi. Quem observa, vê também. Não ontem, quando o carnaval ainda estava nas ruas, mas hoje, em qualquer hoje do ano. Que, se suceder num dia em que você se depare frente a frente com uma pintura de Gabriela Machado, cai num dia de Carnaval de qualquer jeito. Feito de brilho e de canção, feito do rasto cintilante que atravessa as coisas a toda a hora.