Sopro de Corpo. Ronaldo Brito. 1998.
De saída, esses desenhos de grandes dimensões vão parecer a todo mundo naturezas-mortas fora de escala. O risco imediato de um sucinto texto crítico é consumir o seu espaço enumerando tudo o que os vinculam e tudo o que os diferenciam do gênero tradicional. Numa certa medida, porém ,eles não podem prescindir de tais considerações pois foram efetivamente realizados no embate com essa tradição. Começam por testar, digamos assim, a viabilidade contemporânea de uma prática ortodoxa de atelier – o estudo sistemático de algumas poucas formas sob algumas poucas composições. O que já foi natural e até curricular envolve agora uma grave escolha pessoal: a reafirmação da validade estética do contato afetivo com coisas singulares, e suas ressonâncias imaginárias, num mundo que opera segundo a lógica serial anônima e vive ultimamente a proclamar a glória do virtual.
Algo na perene irresolução material desses desenhos sugere uma posição incômoda, senão deslocada, na sociedade atual. Desde logo, contudo, a sua escala e o seu caráter frontal atestam um desejo inequívoco de visibilidade pública. O aspecto provisório revela-se , paradoxalmente, índice do permanente – assinala a ambigüidade essencial da dimensão humana, o seu misto de liberdade e fragilidade.
Movido pela inabalável convicção universalista própria da alta modernidade, Morandi elevou a cena doméstica de suas naturezas-mortas à dimensão de um cosmo. A pintura não era menos do que um estilo ético de vida e sua química cotidiana destilava um lirismo estóico que valia tanto pelo pouco que cantava quanto pelo muito que calava. Graças à sabedoria da renúncia., a inteligência composicional se restringia a variações diferenciais mínimas e, por isto mesmo , ótimas – vingavam assim, à sua maneira, como autênticos exemplos universais. Nos desenhos “ quebrados “ de Gabriela Machado – quase precárias esculturas de papel – por sua vez, a lógica composicional acaba de fato em soma zero : uma ordem sumária de sucessão, a rigor indiferente , apenas alinha os elementos entre si. A todo custo, a artista procura conjurar a sedução do contemplativo, literalmente desdobra-se para contrariar o reflexo condicionado do equilíbrio composicional – no chão, debruçada sobre um papel particularmente recalcitrante, em rápidos movimentos ela vai olhando e desenhando suas “garrafas”; simultaneamente, molha o papel e maneja o bastão de nanquim, sem tempo para vislumbrar o que faz, muito menos efetuar retoques ,dada a secagem instantânea da tinta.
É irresistível a tentação de chamá-las naturezas mortas em ação. Com toda certeza, visam um curto-circuito da lógica relacional que vai aproximá-las da action -painting de Pollock, de Koonning e Kline. E que pertençam à história de um gênero plácido por excelência, supostamente fadado ao exame minucioso de qualidades estáveis, é mais um fator intrigante que conta a seu favor. Mas, feita a aproximação, devemos logo desfazê-la, ao menos relativizá-la sensivelmente. Ausente o pathos sublime típico do expressionismo-abstrato , suprimida a crença no gesto absoluto, redentor da individualidade livre, a urgência do artista contemporâneo torna-se menos um rito expressivo do que um corre-corre ansioso que tenta reinventar uma espontaneidade de segundo grau. E também – porque não ? – um corre-corre reflexivo em torno da pergunta pelo conteúdo de verdade e pelo alcance cultural de obras de artes singulares dentro de um real ostensivamente avesso ao valor de qualidade propriamente dito, isto é, aquilo que torna alguma coisa idêntica a si mesma e distinta de todas as outras.
Sobriamente, portanto, limitemo-nos a registrar o caráter francamente corpóreo do trabalho. Desenhar com o corpo todo, envolver-se fisicamente com o papel, a tinta e os “ modelos”, nada disto hoje em dia implica propósito heróico ou transgressivo – são antes reações espontâneas, multiplicação inevitável de técnicas díspares por parte de um artista aflito por ampliar e diversificar o contato vital com um mundo ameaçado talvez pela desgraça estética strictu-sensu: não o horror, nem a miséria, mas a mera insignificância da presença.
O convívio constante e amoroso com os mesmos modelos eleitos vai se expressar através do transe casual de um fazer que gostaria de sustentar-se indefinidamente num fugaz entrevê-los – o ideal inatingível seria revê-los sempre pela primeira vez – sem cair jamais na rotina da contemplação de uma presença imóvel em tudo e por tudo obsoleta. Nestas condições, compreensivelmente, não resta a esses desenhos outra alternativa senão crescer (em todos os sentidos) até se transformarem em objetos estéticos híbridos: impositivos, pesados demais enquanto desenhos mas frágeis, irregulares, enfim inadaptáveis a qualquer outra categoria. Só assim tomam a forma material de seu dilema: liberar a energia poética , a verdade humana, demasiado humana, de experiências visuais “gratuitas” sob o modo de ser “necessário”, culturalmente responsável , próprio ao trabalho de arte.
Para cumprir o seu problemático destino contemporâneo, as naturezas mortas de Gabriela Machado abolem a convenção básica do gênero – a cena em perspectiva – em favor de uma solução planar, pós-cubista , que lhes garante uma presença por assim dizer “ direta” na superfície do mundo. O que não deixa de produzir, a meu ver, um efeito de estranhamento. Nada mais imprevisível do que reações estéticas subjetivas mas não se deve tampouco subestimar a força objetiva de hábitos perceptivos seculares e a consequente fixação de padrões formais inconscientes. Diante de qualquer natureza-morta, automaticamente procuramos ajustar-nos ao ponto de vista do pintor frente a seu campo de projeção. Ora, a ausência de plano projetivo distingue esses enormes desenhos planares. Ainda assim, nossa primeira reação, e mesmo a segunda e a terceira, é buscar a visada correta, a distância adequada para contemplar uma cena já agora inexistente.
De minha parte, frente à inesperada presença literal desses largos papéis enrugados , recorri ao seguinte expediente crítico: ora avançava em sua área de irradiação física até ficar quase embaixo de suas figuras gigantes, ora afastava-me o bastante para apreender de golpe o conjunto com olhar distanciado. No primeiro caso, as “ garrafas” tendiam a assumir um aspecto escultórico de totens ou ícones imperturbáveis; no segundo, mostravam-se discretos elementos de uma combinatória minimalista, membros de uma série lógica. Desnecessário acrescentar que as duas interpretações – junto a outras tantas leituras eventuais – não são mutuamente excludentes.
Mas, sem dúvida, permanecemos no âmbito tradicional do desenho – todo o sucesso da operação depende, afinal, do mérito do traço. Mais especificamente, creio, da intensidade do traço. Um pouco de pressão a mais da mão, um pouco a menos, e o resultado estaria comprometido. E, no entanto, ninguém saberia determinar o grau exato de tal intensidade… Em alguma medida imponderavelmente precisa, de maneira uniforme ao longo da série, os traços não são nem suaves demais para sugerirem climas intimistas – ou cederem aos apelos “ epidérmicos “ do papel- nem deliberamente enfáticos para autorizarem a impressão enganosa de expressividade gestual – eles se atém estritamente à superfície como se surgissem através das bordas e logo se tornassem parte intrínseca do papel.
Ronaldo Brito publicou em 2005 a Experiência Crítica, editora Cosac Naify – seleção de textos escritos entre 1972 e 2002. É professor no curso de especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil e do programa de pós-graduação de História Social da Cultura na PUC do Rio de Janeiro. Foi o primeiro crítico a escrever um ensaio sobre o movimento Neoconcreto (1975) – Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, MEC/Funarte, 1985, reeditado em 1999 pela Cosac e Naify, série Espaços da Arte Brasileira. Publicou ainda pela Cosac e Naify, Sérgio Camargo (2001) e realizou análises profundas das obras de Amilcar de Castro, Iberê Camargo e Eduardo Sued entre outros. Como poeta publicou O mar e a pele (1977), Asmas (1982) e Quarta do singular (1989).