Vermelho (Em Suspenso). Paulo Venâncio. 2002

Isolar uma ação de todo o resto, prender-se e entregar-se a ela – que não é nada para ninguém – e com ela estabelecer um vínculo irreprimível e constante, e desse fragmento fazer um absoluto disponível mas sem qualquer sustentação, é isso que os desenhos de Gabriela Machado pretendem.

Neles encontramos uma gestualidade contida e extrema. Contida porque não se expande para além de um só gesto, e extrema porque coloca tudo neste gesto, ampliando-o ao máximo. Uma vez executado, nada pode ser retocado ou corrigido. Deve sua existência tal como surgiu.

O que pode levar a buscar essa precisão na execução, a insistência num momento que se fecha nele mesmo sem continuidade? Seria o caso de uma interrupção “primitiva” no fluxo da vida contemporânea tão instrumentalizada e que exige a construção de um fenômeno artificial, que, por assim dizer, desmaterializa a presença tradicional do modelo. Pois esses desenhos se referem a um “modelo” que é literalmente construído espacialmente; tiras de papel higiênico penduradas no espaço. Diferentemente do procedimento tradicional de ateliê, que colocava o pintor diante do modelo durante horas, dias, meses, e que fazia as maçãs apodrecerem no caso de Cézanne, tudo aqui se consome em poucos segundos, nada mais. Para que esta pressão? Para que se livrar assim tão rápido do assunto? Por que não se demorar mais nele? Ou será que só assim ele se sustenta? Será a continuidade do mesmo impulso que anteriormente fazia as naturezas-mortas enormes, desmedidas, algumas com mais de dois metros. Também essa perda da proporção, aumentá-las até e além da escala do corpo não era a forma de lhes dar sustentabilidade?

Em cada um dos desenhos se estabelece uma relação entre o gesto e o todo, uma relação de um para um entre a coisa pictórica e o espaço do papel. Um só gesto vai determinar a ocupação do espaço. E a homogeneidade da cor como que estabelece uma substância indivisível, unitária. O emaranhado da pincelada que, de tão intrincado, chega a se tornar uma bola, parece se referir a um objeto tridimensional instável, corpo escultórico que procura se soltar no espaço até a entropia final do gesto que se prende em si mesmo, encapsulado.

De longe nos vêm à mente os desenhos orientais ideogramáticos sobre papel que, uma vez feitos, não podem ser corrigidos. É um autocontrole fora de qualquer tradição estabelecida o que os desenhos de Gabriela Machado exigem e que nos chama a atenção. Mas aquela certeza que o oriental possuía e transmitia estava na consolidação de um sentido estabelecido durante milênios. Disso estamos muito distantes. Também distantes cada vez mais das nossas próprias certezas ocidentais. Sem querer fazer qualquer analogia com o “princípio de incerteza” da física moderna, também aqui encontramos algo da mesma ordem. Por onde se orientam esses movimentos do pincel? Em qual direção? E se há uma direção, por que ela, por que esta e não outra? Faz diferença ser para cima ou para baixo, para a esquerda ou para a direita? É o que se pergunta sem se obter resposta. De fato, esses desenhos parecem traduzir uma sensação atual, uma indecisão constitutiva dos nossos tempos. Diante disso, coisa que o trabalho decididamente aceita, a resposta é provocar uma intensidade, afirmar uma condição de modo resoluto, sem hesitação. É o que a artista procura fazer. Sem drama ou heroísmo, angústia ou desespero. E esta ação momentânea pode ser vista como paralela a um evento da natureza ou da vida; que em si parece não ter valor, pode ser casual, insignificante, interessante ou desinteressante, mas através dele se busca estabelecer uma determinada intensidade da experiência. Um apoderar-se de algo com toda a intensidade possível.

Temos uma experiência da pintura que busca auto-sustentação diante da Pintura que já não se sustenta por si. Começa-se por não se ter onde se sustentar. Sem pontos de apoio, sem um chão de onde construir. O único apoio então é o contato sempre intenso do pincel na tela. E o movimento que se constitui sem interrupção até o final da execução. Um ato de distensão que é também concentração, que só ele dá, e que interrompido não mais sustentaria. De modo que uma intensidade se forma no contato do pincel no papel. E o contato dá sustentação, um corpo de pinceladas.

Tudo também parece ter ficado muito limitado. Não há muito o que dizer, o assunto é pouco, conciso, abrupto. A área de ação é cada vez menor, em todos os sentidos. É como se equilibrar sobre uma corda, sobre a extensão de um fio que se deve percorrer. Extensão que o próprio andar estende – o próprio pintar pinta. São poucas as opções disponíveis. As opções que só o corpo dá. Especialmente o gesto que não pode ser decomposto em várias operações e que perfaz um exercício repetido de destreza, auto-estimulado, referenciado em si próprio.

Prender-se nas bordas e soltar-se, enrolar-se, contrair – o desenho parece querer se tornar escultórico. Um corpo escultórico que busca adquirir uma energia própria. Assim um enrijecimento momentâneo e intenso do corpo transmite-se à pintura e apresenta-se como um estremecimento visual ascendente/descendente, um desenrolar que se encurva, espiralado, estrebuchar que testemunha um agarrar-se à superfície. Ao final, sobra um nó, um emaranhado suspenso, em queda interrompida.

A outra questão fundamental nesses desenhos é a cor. Difícil imaginá-los em outra que não o vermelho. Tal escolha não é por acaso, acidental. Impossível ignorar toda uma série de associações que o vermelho traz consigo. O vermelho dá às pinceladas um peso feito só de cor. Forma corpo de cor. Uma cor consistente, carnal, tátil, expansiva, romântica, vulgar, luxuriosa, excessiva, intensa, veemente, carnal, invasiva. Tudo isso fica em suspenso, no ar. Estamos muito longe do azul cósmico, incorpóreo, imaterial de Yves Klein – o azul tende ao infinito dissolvente, o vermelho ao corpo finito e à ação. Nestes desenhos, a cor quer se agarrar com veemência ao gesto, enfatizá-lo, afirmá-lo. Por isso um vermelho pesado, flamante. Um vermelho cor ativa e dinâmica, sentimental, vulgar, violento vibrião. Vermelho com um quê de espanhol, goyesco, cartaz de tourada, uma espécie de tauromaquia contida na imaculada folha branca de papel.

Esta experiência pictórica se processa através do contraste de densidades visuais. Dos objetos sólidos, garrafas e frascos das naturezas-mortas passamos para um elemento aéreo, impressionista, um puro fenômeno espacial/luminoso. A transparência diáfana do papel higiênico suspenso é a própria imaterialidade no ar sem peso, delicada absorção da luz, impregnada de luminosidade aérea, prestes a se romper, rasgar. Pura materialidade luminosa, translúcida e incorpórea, um vagaroso vapor, ninféico, exangue. Ao transpor tudo isso para uma outra espessura, peso e densidade visuais esses desenhos criam uma relação entre extremos, corpóreo e incorpóreo, materialidade e imaterialidade, começo e fim, nascimento e morte.

De uma estrutura desfocada para um centro focado ocorre uma certa desreferencialização do espaço, um reposicionamento diante das coisas. Uma reaproximação em segundo grau. As dimensões se alteram, fazendo surgir algumas das maiores naturezas-mortas já vistas, e o desenho age como quem quer “estourar” a imagem. A fascinação pela pincelada aumentada é tal como um balão de ar que continua num lento movimento após o toque, impulsionado por uma energia transferida quase visível. A própria pincelada se tornou o assunto, o motivo mesmo. Marcelo Nitsche, nos anos 1970, isolou a pincelada recortando-a numa superfície de plástico, tornou-a um objeto, como tantos outros da época. Mas ainda assim captava o fascínio de uma ação que se impunha por si própria e que carregava consigo ainda que remotamente a presença do belo. A pincelada ampliada e isolada tornava-se um belo objeto decorativo total e homogêneo; a pincelada era sempre de uma cor só. E isso era fundamental na operação: ser só vermelho, o amarelo, o azul. Uma presença única, total, sem qualquer ambigüidade que poderia assumir entre outras pinceladas. Gabriela Machado pinta as pinceladas. O pintar se tornou assunto e o percurso da pincelada o tema. Isolando apenas uma ação, repetindo-a várias e várias vezes, não até a exaustão que não poderia existir, mas até um autoconvencimento da sua validade tão prosaica e necessária, uma certeza que se mantém em suspenso. As pinceladas confundem-se com uma figura querendo se constituir sem conseguir.

A beleza insuspeita do papel higiênico no espaço tem algo do prosaísmo absoluto contemporâneo: num filme recente, Beleza americana, uma cena de alguns minutos de um saco de plástico flutuando no ar ao sabor do vento, era “bela”. Esse quase sublime pós-moderno, invertendo tudo que o romantismo associou ao termo sublime, apresentava na nulidade banal de um resíduo qualquer uma dimensão única e incomparável e que se fosse percebida por qualquer um na rua provavelmente não causaria nenhum interesse. É um tanto trágico verificar que o vaivém de um pedaço de lixo ao vento possa ser objeto de atenção continuada e exprimir uma condição flutuante, desde que isolado de tudo. Também aqui, nesse papel higiênico suspenso, encontramos algo do gênero desta beleza irrelevante, desencarnada, insubstancial, que vai do tocante ao trivial, sem se contradizer. E se substancializa, por outro lado, num vermelho veemente que é também uma emergência de vida.

Paulo Venâncio é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1983), mestrado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998). É crítico de arte e professor titular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em História da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: arte contemporânea, arte brasileira, crítica de arte, pintura e cultura brasileira.