Tinta ao Alvo. Alberto Tassinari. 2006

Quando já não importa se acerta ou se erra o alvo, o arqueiro zen se torna mestre. Há algo dessa maestria nas pinturas e desenhos recentes de Gabriela Machado. E é bem uma espécie de alvo que também suas obras miram. Há um centro em cada uma delas. Não exatamente o centro do quadro. Mas tampouco, porém, o centro das figuras esgarçadas, quase atrapalhadas, atropeladas, aliteradas, tantas coisas, e que tendem, na maioria das vezes, a uma forma arredondada. Entre os dois centros o olhar oscila. Fixa-se então numa região intermediária, mas logo se desprega por força de uma pincelada que o desconcentra. Mas ao centro, ou à sua procura, retorna, pois as pinceladas são tão evidentes e francas quanto incapazes de levar o olhar muito além do arredondado da forma. Com a energia que arrancam, estancam. Onde um gesto se prolongaria, ganharia expressão, traçaria um destino, pára. Percebe-se, assim, que há expressão demais. As pinceladas se embrulham, são mesmo embrulhos, imbróglios de pinturas, repolhos de tinta. Pois sem a dimensão cômica, estabanada, as pinturas não soletrariam sua outra dimensão, sua contraparte bela, sutil, seus esboços, portanto agora expressão a menos, de flores, frutas, e – perfazendo o círculo de suas possíveis fisionomias -, virando-se de novo pelo avesso, legumes, alfaces, enfim, repolhos. Sérias e engraçadas são essas bolotas enoveladas de tinta. O que, em tempos tão pretensamente sábios, é algo bem mais sério do que as piruetas sem nenhuma graça de tanta arte raciocinada que grassa no mundo da arte. São graças e graciosidades feitas a puro pincel. E com cores, combinadas e desarranjadas. Tudo certo e tudo errado. Portanto, tudo certo.

Nos desenhos em papel em que apenas a cor vermelha era empregada, Gabriela Machado já articulava parte da potência de seu novo trabalho. No lugar das cores, empregava diferentes densidades de pigmentação para desenhar os novelos arredondados. Como um sol, nascente ou poente, a forma circular ficava mais na parte inferior do branco do papel. E se dar nomes de coisas a uma pintura abstrata é uma licença poética licenciosa demais, nada impede dizer que ali não havia nada. Apenas uma bolota avermelhada, sisuda, grande demais para assinalar que estava ali e pequena demais para tanto branco que sobrava. Desmedida, por uma razão ou por outra, era de um siso que antecipa, conforme cresce a tensão de seu silêncio, o riso, pelo menos o sorriso, que vem quebrar a distância e aproximar o que de outro modo não se poria em comunhão. Essa duplicidade, porém, ainda que muito bem dominada, era mais estanque, embora também dramática, do que as dos desenhos a cor e das pinturas de agora. Não podiam, sem a cor, pôr um verde e rosa da Mangueira ao lado de um magenta e amarelo de Matisse. Não carregavam, também, a variedade de tônus, caminhos e descaminhos que o veículo da pintura oferece com maior facilidade. E, sobretudo, se essa facilidade já foi antes conquistada com uma energia histórica pouco igualável. Penso aqui na pincelada, na sua última e talvez mais exuberante configuração, do De Kooning da segunda metade dos anos 60 e dos anos 70. Nas obras de Gabriela Machado, porém, essa pincelada é como que subvertida. Não se inventa duas vezes o pincelar talvez mais inventivo da arte moderna. Mas se pode muito bem usufruir da liberdade que conquistou.

Em De Kooning, por ser expressivo, o gesto, mesmo com suas infindáveis manobras, ainda que descontínuo, nunca é interrompido. A energia que expressa parece ter sido inteiramente transposta para a tela. Já seu emprego por Gabriela Machado, se empresta a fisionomia das pinceladas de De Kooning, não deixa de transfigurá-la ao voltá-la para um centro, para um anovelar-se, mesmo quando, como um fiapo, a pincelada parece caminhar para fora, pois aí também a referência a um centro procurado permanece. É o centro de onde escapa e é o centro ao qual se prende. Daí o arredondado da figura isolada no branco do papel ou na tela crua vazia. E esse círculo procurado também, ainda que de modo menos nítido, tem uma história na arte. Mesmo antes dos alvos de Jasper Johns, o adensamento do centro da pintura é um aspecto cada vez mais buscado nas pinturas de Guston da sua fase abstrata. E as pinceladas de tal forma se acumulam no centro do quadro que não é descabido pensar que sua poética do acúmulo, evidente nos acúmulos de detritos de sua fase figurativa, já existia entre 55 e 65. É pela exacerbação de uma abstração que não é nem pictórica nem linear, mas algo entre as duas, feita de pinceladas quebradiças, muitas vezes quase codificadas como no minimalismo, que Guston transmuta a eloqüência do expressionismo-abstrato em restos de tinta e, depois, em restos de coisas. Assim, se, de De Kooning, Gabriela Machado congela em boa medida o gesto, de Guston conserva o centro, mas desmancha seus acúmulos.

É sempre arriscado montar genealogias para obras de artista. Não se trata aqui, porém, de genealogias documentadas, nem mesmo conscientes, mas de empréstimos poéticos, mesmo que apenas interpretativos por parte da crítica, e que resultam numa terceira coisa, mas não num meio-termo, e sim numa reflexão que a história da arte põe à disposição dos artistas. Toda pintura remete a todas, diz Merleau-Ponty para assinalar essa vida subterrânea da arte. Para não ir tão longe, como muitos pintores contemporâneos brasileiros, a obra de Gabriela Machado tem fontes também em Jorge Guinle . Mais do que um estilo, sua poética constituiu-se em boa parte em fazer confrontarem-se, no mesmo quadro, diferentes estilos europeus e norte-americanos de pintura, como se na batalha em que se transformava o quadro estivesse nossa potência de compreensão do diverso, assim como nossa incapacidade de invenção do individuado por excelência. Não há nenhuma invenção gestual, nenhum pincelar, na arte brasileira, que traduza o indivíduo pleno das pinturas de De Kooning dos anos 70, assim como não há nenhum interprete de nossas mazelas como Guston foi de uma sociedade em que subjetividades tão autoconfiantes têm, como contrapartida, nos acúmulos de dejetos seu lado dissociado, insociável. Já nossas dissociações são outras. Menos individuados, somos mais solidários. Mais solidários, estamos bem mais longe de uma sociedade, ainda que bem outra do que a do norte, porém mais plena que a atual. Toleramos. Temos mesmo algo de zen. Com a diferença que muitas vezes mal sabemos se erramos ou acertamos o alvo. A arte, a pintura, em parte nos regenera. Do jeito que dá, esforçamo-nos, pinta-se, pomos a mesa. Belos repolhos. Esfarrapados buquês.

Alberto Tassinari

Paulista, crítico de arte, estudou engenharia metalúrgica na USP (entre 1971 e 1974). De 1978 a 1981 formou-se em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde defendeu sua dissertação de mestrado, em 1989, sobre a pintura em Merleau-Ponty, e concluiu sua tese de doutorado (1997), que deu origem ao livro O Espaço Moderno, pela Cosac Naify. Foi crítico de arte da Folha de São Paulo entre 1987 e 1988. Tem publicado, desde 1982, artigos sobre arte contemporânea e filosofia em jornais, catálogos de exposição e revistas especializadas.