Passagens. Robert Morgan. 2003
Um dos aspectos mais iluminados dos novos quadros de Gabriela Machado, vislumbra – se em seu intencional senso de movimento. Podemos ver suas formas lineares como sinais ideográficos, não em sentido literal, em que supõe – se a existência de um significado pré – ordenado, mas em sentido abstrato. Suas formas lineares carregam uma conotação de prazer visual, seja quando pinta em aquarela ou sobre o papel, ou mesmo quando constrói esculturas de rolo de papel.
Seu uso dos gestos retém um certo relacionamento sinestésico com o espaço. Em essência suas formas gestuais são inseridas no espaço da pintura, sendo expressão das formas abstratas, entretanto muito reais. As pinturas de Gabriela expressam o ser no tempo presente e representam um momento de alta consciência, relacionada a ação do pincel. São sinais de contemplação, momentos no tempo transformados em passagens de sentimento e estados de espírito. Criadora do espaço ,um dínamo, de persistente atividade. Seus gestos são sobre a conexão das coisas, os espaços entre os traços e o vazio que os cerca.m. Ela entende que o espaço na arte não é algo dado, ainda que o artista seja seu criador, o espaço é percebido. Em seus trabalhos existe uma tranqüila atitude de expectativa no instante de concepção das pinturas. Gabriela Machado estuda a superfície do momento, imagina a brancura, antes de se envolver e se relacionar com ela. O gesto é uma progressão linear do pensamento ou em outras palavras, ele é o esvaziamento da mente, semelhante `a técnicas de meditação Budista.
Existe um termo no Zen Budismo chamado MU ou ausência do nada, neste estado meditativo, a mente abandona a si própria, distanciando- se de todas as tarefas mundanas. Deste modo, corpo e mente fundem-se como uma única forma. O gesto da mão envolvendo o pincel esvazia-se de si mesmo, de todos os pensamentos mundanos. A pista deste esvaziamento é o que permanece, torna-se um golpe, um único continuum de movimento em relação ao pincel, torna-se a chave para a revelação em Gabriela Machado. Mais do que consumir o espaço, o gesto o define. A ausência é percebida pela presença. A configuração abstrata progride através do espaço como um pincel; move – se no vazio, com a intenção de criar, conceber; trazer o desenho enfim à vida.
O eminente teólogo Pierre Teilhard de Chardin costumava discursar sobre o tema “O espaço do sagrado”, o espaço do ritual. Recordava-nos sobre o caminho de entrada, a transição de um mundo para outro. A passagem do secular ao espiritual. Segundo Chardin, o ápice da experiência em que o homem se atrela ao significado é o momento da descoberta, o instante do Ser. Deste modo, podemos facilmente nos transportar desta noção do espaço sagrado da Teologia para o espaço sagrado das Artes, ou seja; no lugar do gesto, o exato momento da relatividade entre o espaçamento e a temporalidade.
Uma vez que os traços gestuais empregados por Gabriela Machado são tanto um ato temporal quanto espacial, é inegável sua representação como forma de relatividade. O trabalho de Gabriela Machado é essencialmente sobre este tipo de gestual. Uma atitude que encapsula, captura a relatividade de sua experiência no instante. Sua maneira de trabalhar, pensar e sentir delineia – se no processo de manipular o pincel. A tinta está na quietude, na profunda ressonância do rubro – carmim, que vai além dos limites do previsível e do contexto emocional sugerido.
O observador, ao adentrar o espaço da galeria, é envolvido por estas formas abstratas e lineares que dançam sobre a superfície de suas pinturas. Suas formas são simples e diretas, não existe excesso, ou hesitação. Estas são preenchidas com confiança e sutil exuberância, referindo-se a arquitetura do lugar, não literalmente, mas como uma metáfora da presença espacial. Passagens dentro do espaço que funcionam através de uma interação com o outro. As formas são organicamente desenhadas, mas geometricamente concebidas. Existe uma aguda intensidade biomórfica nas obras de Gabriela Machado, uma profunda alacridade que dá a estas recônditas pinturas o sentido de se estar vivo. Existe nesta orgânica inteireza, um encontro marcado com o mundo dos sentidos.
Consideremos também a questão dos rolos de papel que descem do teto em espirais. Não devemos ignorar o fato de que essa artista brasileira começou sua carreira na arquitetura. Sua entrega à vocação abriu caminho, gradualmente, para o tipo de trabalho produzido por ela atualmente.
A artista vê suas vibrantes formas espiraladas ligadas intrinsecamente a arquitetura. Elas estão ligadas a uma certa sensibilidade oriental, à uma maneira de ver estruturas orgânicas dentro de containers, de paredes, janelas, portas e tetos. Ela oferece-nos uma maneira de representar o espaço, de iluminar nossa noção de prazer visual, como se nossos corpos passassem por entre cômodos abertos.
Existe algo intrínseco sobre as pinturas que é decisivo, uma qualidade difícil de ser ignorada, que penetra a pele, formando-se dentro do ato de ver . Esta inevitável confrontação com as formas orgânicas e temporais de Gabriela Machado – sejam em duas ou três dimensões – é um aspecto indelével de seu trabalho. O resultado é conseqüência do processo pelo qual ela pensa e representa o sentimento. Suas formas apelam para os sentidos de uma maneira que vai além de nossas rotinas cotidianas. A herança brasileira está muito presente em sua obra. A sensualidade ali, é infatigável, incansável, pois são pinturas presenteadas aos sentidos.
As pinturas da artista nos deliciam pelo simples prazer que oferecem. São destituídas de peso, mas conseguem ser profundamente captadas, capturadas pela retina. Suas obras nos oferecem um momento de descanso para refletir e recomeçar mais uma vez. Propõem a visão de um outro universo. Um ambiente de relatividade onde o tempo e o espaço, o corpo e a mente mesclam-se, fundem-se. As obras acrescentam uma carícia. Um mimo de alegria em nossas vivências diárias, criando um santuário que nos permite sentir conectados.
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Robert C. Morgan é escritor, crítico de arte internacional, curador, poeta, conferencista e artista. Podemos mencionar entre seus livros mais recentes: The End of the Art World (1998), Gary Hill (2000), e Bruce Nauman(2002). Morgan trabalha também como colaborador – editor para Sculpture Magazine e Tema Celeste (Milan), assim como para Art News, Art Press (Paris), and Art and Culture (Seoul). Robert C. Morgan possui um MFA em Escultura e é Ph.D. em História da Arte. Foi premiado com o Arcale Award em 1999, por seus trabalhos na Crítica da Arte em Salamanca, Espanha.